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Dislipidemia na infância e na adolescência




    A história natural da arteriosclerose inicia-se na infância, cabendo ao pediatra sua prevenção, em razão do risco de morbidade e mortalidade na fase adulta.

    Assim, o pediatra tem responsabilidade na orientação alimentar e no estilo de vida da criança e do adolescente, além do dever de detectar precocemente fatores de risco como antecedentes familiares positivos de doenças cardiovasculares (obesidade, hipertensão arterial, dislipidemia, diabetes tipo 2, acidente vascular cerebral, infarto do miocárdio e doenças coronarianas).

    De todas as doenças crônicas comuns, nenhuma é tão claramente influenciada por fatores ambientais e genéticos como a doença coronariana. A patogênese da aterosclerose começa durante a infância. A dieta, o estado nutricional, a composição corpórea e o sedentarismo estão associados ao perfil lipídico plasmático da criança e do adolescente.

    Idade e Gênero: a doença coronariana, um distúrbio multifatorial, está fortemente associado ao aumento da idade e pelo sexo masculino, embora seja cada vez mais evidente que a doença cardíaca está sub-reconhecida nas mulheres.

    Dieta: há fortes associações entre a ingestão média de gorduras saturadas, colesterol plasmático e mortalidade por doença coronariana. Aleitamento materno exclusivo parece ter papel protetor. Alto consumo de alimentos industrializados, que apresentam alta densidade energética, além de maior quantidade de sal, açúcar, gorduras saturadas e trans, está associado ao risco de doença cardiovascular.

    Tabagismo: o uso de tabaco confere um risco vitalício duas vezes maior.

    Sedentarismo: a atividade sedentária e a alta ingestão de gorduras saturadas que levam à adiposidade aumentam o risco por meio de diferenças nos níveis plasmáticos de lipoproteínas que são aterogênicas.

    História familiar: a história familiar é um reflexo da influência combinada do estilo de vida e predisposição genética para doença cardíaca precoce. O risco de doença cardíaca prematura associado à história familiar positiva é 1,7 vezes maior do que em famílias sem essa história.

    Atualmente, preconiza-se a dosagem de não HDL-colesterol (não HDL-c em exames de rotina para crianças de 8 a 11 anos e adolescentes acima de 17 anos), sendo considerado risco aterosclerótico quando a concentração sérica estiver maior que 145 mg/dL. A dosagem do não HDL-c não necessita de jejum de 12 horas.

    A Sociedade Brasileira de Cardiologia e a Sociedade Brasileira de Pediatria recomendam, na I Diretriz de Prevenção de Arteriosclerose na Infância e Adolescência, que a avaliação do perfil lipídico (triglicérides, colesterol total e frações) deve ser realizada em todos os pacientes acima de 10 anos.

    A conduta baseia-se no fato de que, nessa fase, ocorrem fatores fisiológicos de modificação do perfil lipídico, além de exposição a fatores de riscos ambientais, como tabagismo, álcool e uso de anticoncepcionais.

    Dislipidemia

    Etiologia da dislipidemia

    A dislipidemia pode ser primária ou secundária.

    Dislipidemia primária

    Geralmente, as causas primárias decorrem de modificações genéticas do metabolismo lipídico, que podem sofrer influência do fator ambiental, como consumo inadequado de gordura na dieta.

    Hipercolesterolemia familiar

    A hipercolesterolemia familiar é a mais comum dislipidemia primária na criança. Descrita como a dislipidemia primária mais frequente (1:500) na sua forma heterozigota, é rara a forma homozigota (1:1.000.000).

    Apresenta defeito molecular e atualmente existem 700 mutações que afetam o processo de síntese do receptor do LDL‑colesterol (LDL‑c). O defeito no receptor de LDL‑c na grande parte das células do organismo acarreta prejuízo na endocitose da fração LDL‑c e na produção de colesterol endógeno, que seria controlado pelo receptor LDL‑c hepático, acarretando prejuízo em sua inibição nessa doença.

    É considerada herança autossômica codominante, cujo número de receptores de LDL‑c seria 100% de comprometimento nos homozigóticos e 50% nos heterozigóticos.

    O diagnóstico de hipercolesterolemia familiar é realizado por meio de avaliação da história familiar de evento cardiovascular, exame físico e perfil lipídico. A análise do DNA para determinação genética das mutações funcionais do receptor LDL‑c confirma o diagnóstico.

    As manifestações clínicas dermatológicas, como xantomas tendinosos, surgem na infância na forma homozigota. Xantomas plantares e tuberosos na superfície extensora das mãos, dos joelhos, dos cotovelos e os xantelasmas do arco corneano aparecem na 1ª e na 2ª décadas de vida. O aparecimento de xantomas ocorre tardiamente na 3ª década.

    Na adolescência, podem‑se observar depósitos de colesterol éster nos tendões e nos tecidos frouxos. Nos pacientes homozigotos, a doença arterial coronariana manifesta‑se precocemente, sendo que 50% dos pacientes têm sintomatologia de angina pectoris aos 20 anos de idade. As doenças cardiovasculares atingem a forma heterozigótica na 4a e 5a décadas nos homens e na 5a e 6a décadas nas mulheres.

    Nos casos homozigóticos, as concentrações séricas de colesterol variam entre 500 e 1.000 mg/dL, sendo que o aumento da fração LDL‑c atinge cerca de 600 mg/dL, a fração HDL‑c apresenta concentrações abaixo da normalidade e a concentração de triglicérides não está alterada. O colesterol total está elevado, em torno de 235 mg/dL.

    Dislipidemia secundária

    As causas secundárias de dislipidemias são hábitos de vida inadequados (dieta rica em carboidratos e/ou gorduras saturadas e trans, tabagismo e etilismo), doenças, síndromes, utilização de medicações de uso contínuo ou de longo prazo.

    Entre as causas secundárias, a dislipidemia resultante de obesidade é a mais prevalente.

    Causas secundárias de dislipidemia
    Estilo de vida Uso rotineiro de medicamentos Doenças
    – Dieta
    – Inatividade física
    – Tabagismo
    – Obesidade
    – Anorexia
    – Corticosteroides
    – Ácido retinoico
    – Estrogênios exógenos
    – Drogas imunossupressoras (ciclosporina)
    – Inibidores de protease antiviral HIV
    – Betabloqueadores
    – Testosterona, Esteroides anabólicos
    – Contraceptivo oral
    – Metabólicas: diabete melito tipos 1 e 2, lipodistrofias
    – Distúrbios hormonais: hipotireoidismo, síndrome de Cushing
    – Depósito: Gaucher, Juvenile-Sachs, Niemann-Pick
    – Tratamento de neoplasias
    – Síndrome de Kawasaki
    – Inflamações crônicas: lúpus sistêmico, artrite reumatoide
    – Cardiopatia congênita: coartação de aorta
    – Hepáticas: cirrose, atresia biliar congênita
    – Renais: insuficiência renal crônica

    Diagnóstico de dislipidemia

    O diagnóstico de dislipidemia deve ser efetuado após constatação de mais de uma mensuração de um perfil lipídico alterado, coletado adequadamente após 12 horas de jejum, no mesmo laboratório de análises clínicas.

    Considera‑se perfil lipídico alterado quando um ou mais valores séricos de triglicérides, colesterol total e frações estiverem inadequados. A Sociedade Brasileira de Pediatria e a Sociedade Brasileira de Cardiologia recomendam a classificação da I Diretriz Brasileira sobre Dislipidemia e Prevenção da Aterosclerose para determinação do perfil lipídico da criança maior de 2 anos e do adolescente até 19 anos.

    Também existem valores do perfil lipídico em classificação percentilar por sexo e idade, além de valores de não HDL‑c, apoproteína AI e B para crianças e adolescentes. O colesterol total e a fração não HDL‑c (fração aterogênica do colesterol) são utilizadas como triagem e não necessitam de 12 horas de jejum, portanto, não devem ser considerados no diagnóstico de dislipidemia.

    Valores séricos do perfil lipídico para crianças maiores de 2 anos e adolescentes
    (IV Diretriz Brasileira sobre Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose)
    Lipoproteínas (mg/dl) Desejável Limítrofe Aumentado
    Colesterol total < 150 150 – 169 > 170
    LDL-c < 100 100 – 129 > 130
    HDL-c > 45    
    Triglicérides < 100 100 – 129 > 130

    Tratamento da dislipidemia

    A maioria das crianças que requer tratamento e acompanhamento apresenta elevada concentração de LDL‑c e/ou triglicérides, com ou sem diminuição da fração HDL‑c.

    Orientações alimentares

    O tratamento inicial das crianças com alteração lipídica consiste em modificar a dieta conforme a lipoproteína alterada (LDL‑c ou VLDL‑c/TG).

    Enfatiza‑se a preocupação da redução de gorduras para menos de 25% do valor energético total, pois isso compromete o crescimento e o desenvolvimento.

    A quantidade de minerais e de vitaminas deve ser adequada para promover crescimento e desenvolvimento normais, além de que muito micronutrientes são potentes antioxidantes exógenos, que colaboram na proteção do desenvolvimento do processo arteriosclerótico.

    A meta a ser atingida é a normalização dos valores séricos de triglicérides (> 100 mg/dL para > 10 anos e < 130 mg/dL 10 a 19 anos) e LDL‑c (< 130 mg/dL). Nas dislipidemias primárias, alguns autores preconizam redução de 30% do valor do LDL‑c nos adolescentes de 10 a 14 anos, para posteriormente atingir a meta.

    As crianças maiores de 2 anos de idade com aumento da fração LDL‑c, com elevação da ApoB e diminuição da fração HDL‑c são orientadas a seguir a fase II, que constitui em dieta normocalórica e com restrição lipídica.

    Nas crianças e adolescentes com hipertrigliceridemia, deve‑se aumentar oferta de peixe na dieta, visando ao maior consumo de ácidos graxos ômega 3, diminuir consumo de carboidratos simples, limitar o consumo de gordura a 30% do valor energético total e evitar o consumo excessivo de energia.

    Nessas crianças, deve‑se atentar para o consumo de açúcar e frutose presentes em alimentos industrializados (bebidas, sucos, refrigerantes, doces, balas, gomas de mascar, bolos prontos, pão doce), pois o excesso desses carboidratos contribui para maior elevação de triglicérides.

    O incremento do consumo de carboidratos complexos (batata, arroz, pães, massas) e a ingestão de fibras (idade + 5 g/dia, dose máxima: 25 g/dia) devem ser sempre incentivados. O consumo de fibra solúvel auxilia na diminuição do LDL‑c, assim como a utilização de fitosteróis (2 g/dia), que contribui para a redução de 10% do LDL‑c.

    Frutas, grãos (soja e linhaça) e cereais (aveia) colaboram para o aumento da ingestão de fibras diária. A meta dietética pode ser atingida com algumas medidas, como:
    – evitar o consumo de alimentos com alto teor lipídico (industrializados);
    – trocar alguns alimentos ricos em gorduras saturadas e trans por gorduras poliinsaturadas;
    – evitar alimentos com alto teor de colesterol (fígado, gema de ovo);
    – escolher alimentos contendo alto teor de carboidratos complexos e fibras.

    A substituição dos alimentos consiste em manter uma escolha de alimentos preferenciais e substituí‑los por alimentos manufaturados com restrição lipídica, como leite e derivados semidesnatados. A escolha de leite semidesnatado e derivados deve‑se à quantidade de vitaminas lipossolúveis contida nestes alimentos, que têm função de combater os radicais livres como antioxidantes exógenos.

    Se o objetivo principal é a educação nutricional dessas crianças, deve‑se ensiná‑las “o quê” e “quanto” comer. Parece ser esse o modo mais eficiente de controlar seu hábito alimentar:
    – teor de gordura: recomenda-se a ingestão de alimentos com menor teor de gordura. Essa abordagem é fundamental na educação nutricional, pois envolve a remoção de gorduras visíveis da carne, da pele do frango ou do peru, preferencialmente antes de cozinhar e definitivamente antes de comer. Pode-se retirar o óleo de alimentos enlatados e escolher preparações que contenham água como veículo (p. ex., o atum).
    – leite semidesnatado: deve‑se utilizar leite semidesnatado em todas as preparações, como pudins e bolos.
    – óleos vegetais: reduzir a quantidade de óleos vegetais na preparação dos molhos e dos alimentos, preferindo o uso de óleo de soja ou canola, por apresentar maior quantidade de ácidos graxos poliinsaturados ômega 3 (ácido graxo linolênico).
    – azeite de oliva: utilizar azeite de oliva (gordura monossaturada) para preparo de saladas e molhos, por seu efeito benéfico nas lipoproteínas.
    – manteiga, margarina ou creme vegetal: o consumo diário deve ser monitorado e limitado. Infelizmente, as melhores opções disponíveis no mercado brasileiro exigem maior poder aquisitivo para obtenção desses produtos. Por meio de novos processos de interesterificação das gorduras do leite de vaca e dos óleos vegetais (milho), conseguiu‑se aumentar a consistência da mistura sem a produção de ácidos graxos trans. A indicação de margarinas enriquecidas com fitosteróis limita‑se aos pacientes dislipidêmicos.
    – embutidos e industrializados: o hábito da família de consumir grandes quantidades de embutidos (salsicha, linguiça, mortadela e ovos) e industrializados (pipocas de microondas ou do cinema, bolos, tortas, bolachas, lasanhas) também contribui para aumento do LDL‑c. O primeiro grupo de alimentos de origem animal é rico em colesterol e gordura, principalmente a saturada, enquanto o segundo grupo é rico em gordura e gordura trans. A solução é diminuir a frequência de consumo desses alimentos.

    A troca de alimentos propicia a mudança da escolha (p. ex., em vez de aperitivos com alimentos de alto teor de lipídios, como amendoim e nozes, preferir pipocas preparadas na panela com pouco óleo; escolher iogurtes congelados isentos de gorduras em vez de sorvetes).

    A exclusão de certos grupos de alimentos, como petiscos amanteigados e salgadinhos, é importantíssima, sendo especialmente difícil retirar da dieta da criança alimentos prediletos ou aqueles que os amigos ou irmãos consomem muito. Nesse impasse, orienta‑se a família a diminuir a frequência do consumo desse alimento em casa.

    Com a finalidade de reduzir a ingestão lipídica, deve‑se optar por diminuição da ingestão de gorduras visíveis (limitando o consumo de óleos vegetais, margarina, temperos de salada, maionese, cremes, molhos e manteiga) e redução da ingestão de gorduras invisíveis (limitando o consumo de alimentos panificados industrializados, biscoitos, salgadinhos; carnes processadas; utilizando leite semidesnatado e derivados, escolhendo a carne mais magra e fazendo prevalecer as preparações que não necessitem de fritura – ferver, grelhar, cozinhar e assar).

    O conhecimento da alimentação das crianças em casa é fundamental para interferir no hábito familiar, pois a orientação específica para cada família é o único meio de conseguir o sucesso terapêutico. Modelo educacional parece facilitar o tratamento dietético:
    primeiro passo: é o conhecimento, por parte dos pais e do paciente, dos alimentos preferidos, identificando aqueles com altos teores de colesterol e gordura e os de alta quantidade de gorduras saturada e trans, aprendendo, assim, a trabalhar com esses novos conceitos.
    segundo passo: consiste em ensinar os pais e o paciente como reduzir o consumo de colesterol, como diminuir a ingestão de gordura, como manusear o balanceamento dos ácidos graxos, como ler e entender os rótulos dos alimentos, como fazer substituições adequadas, como fazer refeições fora de casa e como modificar receitas e menus.

    Atividade física

    As crianças com dislipidemias também são orientadas a desenvolver atividade física regular, seguindo as propostas descritas para a população geral.

    Apoio psicossocial

    Eficiente conduta terapêutica dietética com objetivo de modificar o hábito familiar e o estilo de vida da família deve, sempre que possível, ser complementada por apoio psicológico e social para obtenção de sucesso pleno.

    Referências Bibliográficas

    • Dennis Alexander Rabelo Burns (Org.). Tratado de pediatria: Sociedade Brasileira de Pediatria, 4a Edição. Barueri, SP: Manole, 2017.
    • Robert M. Kliegman. Nelson Textbook of Pediatrics, 20th Edition. Canada: Elsevier, 2016.

    • Dr. Marcelo Meirelles
    – Médico Pediatra
    – Médico Hebiatra (Especialista em Medicina do Adolescente)
    – Psiquiatria na Infância e Adolescência




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